Europeus que se negam a pegar aviões, para evitar emissões de carbono, enfrentam problemas no trabalho
O episódio foi amplamente noticiado como o primeiro caso conhecido em que a rejeição ao avião por motivos ambientais foi considerada um motivo para um desligamento.

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Mundo Poluição
GIULIANA MIRANDA
MADRI, None (FOLHAPRESS) - Depois de refletir sobre os impactos da aviação nas emissões de gases de efeito estufa, o pesquisador italiano Gianluca Grimalda, 53, decidiu que iria parar de viajar de avião. A mudança acabou custando o seu emprego em 2023, quando ele levou 72 dias para sair de uma ilha remota em Papua-Nova Guiné, na Oceania, e chegar à Alemanha, na Europa, sem recorrer ao transporte aéreo.
O episódio foi amplamente noticiado como o primeiro caso conhecido em que a rejeição ao avião por motivos ambientais foi considerada um motivo para um desligamento.
Recentemente, depois de mais de um ano de batalha legal com a instituição de pesquisa, o cientista chegou a um acordo com os antigos chefes, recebendo uma compensação pela demissão.
O desfecho nos tribunais voltou a colocar a preocupação de muitos europeus com o impacto ambiental de suas próprias viagens sob os holofotes.
Em 2019, a ativista sueca Greta Thunberg ajudou a popularizar o movimento entre a juventude após ter cruzado o Atlântico de barco duas vezes para evitar pegar um avião
Foi na Suécia também que nasceu um dos mais conhecidos movimentos antivoos, batizado com a palavra sueca "flygskam", que significa "vergonha de voar".
Uma pesquisa do Banco de Investimento Europeu indicou que, em 2020, 36% dos europeus já voavam menos nas férias por conta das questões climáticas, embora haja discrepâncias significativas entre os países.
"Eu decidi minimizar o uso de aviões há cerca de 15 anos. A inspiração veio de um grupo de cientistas que viajou da Europa para o Japão de trem e de barco em 1997, para a COP3 [3ª conferência do clima da ONU], quando o Protocolo de Kyoto foi assinado. Antes, eu não fazia ideia de que os aviões emitiam tanto. Então comecei a pensar: bem, por que eu não faço o mesmo?", disse Grimalda à Folha de S.Paulo.
Embora o desejo tenha nascido na década de 1990, ele relata que só fez a primeira grande viagem sem usar avião em 2010. "Eu comecei progressivamente evitando voos dentro da Europa, até chegar a fazer uma viagem de Papua-Nova Guiné totalmente sem avião, algo que eu antes nem sabia que era possível."
E, ainda que o trajeto seja efetivamente possível, isso não significa que seja fácil, uma vez que as rotas oficiais incluem pelo menos um trecho de avião. Isso obrigou o pesquisador a pegar "caronas" em navios de carga, com esperas que chegaram a 15 dias.
Diante do atraso para retornar à Europa, o instituto para o qual trabalhava deu um ultimato: ele tinha cinco dias para pegar um avião e retornar à Alemanha. Grimalda conta que decidiu seguir sua objeção de consciência quanto aos voos e prosseguiu com a viagem lenta -que envolveu 18 ônibus, 18 trens, 7 barcas, 1 navio mercante, 8 vans, 2 comboios policiais e 2 caronas de caminhão- o que acabou resultando na demissão.
O cientista, que está agora novamente a caminho de Papua-Nova Guiné, já aceitou uma nova proposta de trabalho, na qual o empregador afirma que seus deslocamentos prolongados não serão um problema.
Grimalda revela ainda que, desde que seu caso ganhou projeção, já foi contatado por cerca de 20 pesquisadores que também estão interessados em abandonar ou reduzir significativamente o uso de aviões.
Vivendo em Portugal há quase três anos, a estudante francesa Marine Martin, 24, já não voa para visitar a família, que vive nos arredores de Paris. Como não há ligações ferroviárias entre Lisboa e outras capitais europeias, ela recorre às viagens de ônibus.
"São pelo menos 24 horas viajando. Não vou dizer que é agradável, mas sinto que estou fazendo a minha parte", diz ela, que restringiu os voos aos destinos fora do continente europeu. "Já fui à Tailândia e tenho vontade de conhecer outros lugares, mas quero fazer isso com planejamento para ter o menor impacto possível."
Pesquisador do Iema (Instituto de Energia e Meio Ambiente), Felipe Barcellos diz que a redução de viagens de avião como forma de diminuir emissões faz sentido em um contexto geral, mas que não deve se basear apenas em atitudes de algumas pessoas.
"O desafio é fazer com que não seja apenas uma decisão individual, com uma 'pessoa excêntrica' que vai diminuir as viagens e, assim, as emissões de gases de efeito estufa", afirma o pesquisador, que defende a adoção de políticas públicas para a descarbonização do setor e o incentivo a formas de transporte mais sustentáveis.
A aviação foi responsável por cerca de 2,5% das emissões de CO2 relacionadas ao setor de energia em 2023, de acordo com a Agência Internacional de Energia. Embora a fatia seja relativamente pequena, as viagens de avião têm, individualmente, uma pegada de carbono maior do que o uso de outros meios de transporte.
As emissões, contudo, são bastante concentradas. Um artigo publicado na revista especializada Global Environmental Change estimou que cerca de 1% da população mundial é responsável por 50% das emissões da aviação comercial. Esses superemissores são, sobretudo, os usuários de aeronaves privadas.
O peso desproporcional dos "jatinhos" tornou essas aeronaves alvos frequentes de protestos de ambientalistas.
Barcellos destaca que inovações tecnológicas, como o desenvolvimento de aeronaves mais eficientes e de combustíveis menos poluentes -como o chamado SAF, sigla em inglês para combustível sustentável de aviação-, são as principais apostas para descarbonizar o transporte aéreo.
"Em países como o Brasil, por exemplo, onde muitas pessoas ainda não têm acesso ao avião, é até desejável que isso se amplie, e que mais gente possa viajar e fazer turismo, que também é bom para a economia. É aí que precisam entrar as políticas públicas e o desenvolvimento tecnológico do país, para que, quando essas pessoas tiverem acesso às viagens, isso seja feito com o menor impacto possível", avalia.
Produzido a partir de fontes renováveis, o SAF polui até 80% menos do que o querosene tradicional. A escala de fabricação, no entanto, ainda é limitada, e os preços são elevados em comparação com os combustíveis fósseis.
Além de incentivar o uso de SAF, países europeus vêm tentando oferecer alternativas ao uso dos aviões, sobretudo com a revitalização de linhas ferroviárias e a disponibilização de assentos a preços promocionais.
Países como Alemanha e Espanha criaram bilhetes especiais, com valores reduzidos, para que seus moradores façam viagens de trem em deslocamentos internos.
Apesar das preocupações ambientais, o custo dos trajetos aéreos permanece, na maioria dos casos, inferior ao dos trens, o que torna os voos mais atrativos para os consumidores.